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Alfabetização: a guerra das “evidências”

Área de alfabetização – vital para os avanços da educação em nosso país – é mais uma vítima da “guerra das evidências”, usadas de maneira inadequada.

De repente, ex-ministros, especialistas e ONGS se tornaram adeptos das evidências, desde criancinhas. Cobra-se do novo governo que siga as evidências. Bom sinal?  Algo está mudando? Ou estão pervertendo o sentido da palavra “evidência”?

Tomemos o caso da alfabetização – objeto de reportagem publicada na página 29 do jornal O Globo do dia 5 de janeiro. A reportagem apresenta e revela vários problemas. Para ajudar a qualificar o debate, vamos ao trecho que trata dos métodos de alfabetização. Por limitação de espaço, escolhi cinco trechos para comentar – os três primeiros são de responsabilidade das jornalistas e os dois últimos, de consultores entrevistados.

Afirmação 1: “A questão ideológica também aparece na opção por um método específico de alfabetização”. Pergunta 1: por que a escolha de um método é uma opção ideológica? E a escolha do não-método ou a visão construtivista patrocinada pelos governos anteriores não era ideológica? Ou ideologia nas decisões só vale para o presente governo? As evidências científicas – sejam na saúde, nas questões de segurança, violência ou onde for – servem para constatar cientificamente se alguns métodos (e procedimentos) são melhores do que outros. Isso não torna a escolha de um determinado procedimento cirúrgico ideológica. E é por isso também que se deve sempre falar em evidências científicas, e não apenas em evidências. Conclusão 1: debate e discussão sobre métodos de alfabetização pertencem ao universo das evidências científicas, e não das ideologias.Afirmação 2: A reportagem afirma que “nele (método fônico), a aprendizagem começa nas letras e sílabas até chegar nas palavras”. A afirmação é incorreta, não condiz com o conhecimento existente. Como está na raiz da própria palavra, método fônico se baseia no entendimento de que a escrita representa o som da palavra. Nas escritas alfabéticas – como é o caso do Português -, as letras (tecnicamente chamadas de grafemas) representam os fonemas (unidades de som de que se compõem as palavras). Métodos fônicos não terminam nas letras – eles começam e terminam no fonema – que é a unidade constitutiva dos sistemas de escrita alfabéticos. Conclusão 2: a reportagem parece refletir o viés ideológico (pois não fundamentado cientificamente) de um grupo e não a busca de fontes fidedignas.

Afirmação 3: “Entre a equipe (do MEC), há opinião de que as técnicas construtivistas têm caráter ideológico”. Como saber se a afirmação é correta? Recorrendo às evidências! A comunidade científica internacional que atende pelo nome de “Ciência Cognitiva da Leitura” tem como consenso estabelecido (paradigma dominante) que os métodos fônicos são comprovadamente superiores aos demais – em geral e especialmente para alunos de meios socioeconômicos menos favorecidos. Isso porque nesses meios as crianças normalmente não recebem os estímulos “fônicos” adequados (o V da vovó e o P do papai). Por outro lado, as afirmações do construtivismo sobre alfabetização – todas elas sem exceção – foram suplantadas pelas evidências cientificas há mais de 30 anos, embora o conhecimento sobre essas evidências não tenha chegado às faculdades de educação e ao MEC. Na ciência, as afirmações são sempre provisórias, mas as teorias, quando suplantadas pelas evidências, perdem sua validade. Sem comprovação, transformam-se em ideologias. Conclusão 3: Onde está a ideologia?  No método fônico, cientificamente comprovado como o mais eficaz? Ou nas teorias construtivistas sobre alfabetização, empiricamente suplantadas pelas evidências científicas?

Afirmação 4 – “Não faz sentido falar em um método versus o outro. O aluno precisa aprender a palavra e associar isso à leitura”. Por que não faz sentido discutir a eficácia de método? As evidências científicas são inequívocas a respeito da superioridade dos métodos fônicos e o fracasso dos métodos construtivistas. O Brasil adota ideias construtivistas para alfabetizar e os alunos não aprendem a ler.  Conclusão 4: Cabe perguntar: para que servem as evidências – se os chamados “especialistas” não se curvam a elas?

Afirmação 5 – “Os métodos fônicos têm sido usados em países como Austrália e Holanda. Finlândia e Canadá adotam uma linha mais construtivista”. A afirmação do “especialista” bate de frente com a verdade: métodos fônicos são oficialmente recomendados em praticamente todos os países da OCDE. Apenas um exemplo: “Na escola primária, o currículo da alfabetização adota métodos fônicos, com estratégias voltadas para a compreensão de leitura sendo introduzidas já partir do 1º e 2º anos…”  Essa citação pode ser encontrada nos documentos oficiais do governo finlandês, especialmente no Finnish National Board of Education, 2014. Conclusão 5: Evidências? De quais evidências estamos falando?”

O Brasil começa a despertar para as evidências. O jeito brasileiro de assimilar novas ideias frequentemente consiste em ampliar o conceito para frequentemente desmoralizá-lo, de forma a acomodar a todos. Como diz Jô Soares, o Brasil consegue esculhambar até a máfia.

O uso de evidências para subsidiar políticas públicas e práticas profissionais (especialmente na medicina) não é novo. O caminho não se faz sem percalços. Mas existem conceitos e mecanismos – inclusive institucionais, como as “clearinghouses” – que chancelam as evidências. O que fará o debate progredir – se houver debate – é a seriedade por parte da comunidade acadêmica e pelos que efetivamente se interessam pelo futuro da educação. Dado que as Universidades levarão um longo tempo para cair na real e considerando as conhecidas dificuldades enfrentadas pelos jornalistas para discutir temas técnicos de forma minimamente adequada, os pesquisadores independentes e as ONGs brasileiras fariam um grande serviço à nação se adotassem posturas rigorosas, um discurso sem ambiguidades e práticas mais consistentes com as evidências científicas. A começar por tudo o que sabemos sobre alfabetização e sobre o uso e a importância dos métodos fônicos. Por João Batista Oliveira

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