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18 de maio – Dia da Luta Antimanicomial

A data simboliza a reafirmação do direito do paciente a um tratamento público digno, integral e que proporciona a possibilidade do exercício de cidadania de qualidade. O movimento da luta antimanicomial se organiza no Brasil no final da década de 1970, o que coincide com abertura política no país. Não é difícil entender a conexão, afinal trata-se de uma questão de direito, cidadania e humanismo.

A Lei 10.216 de autoria do deputado Paulo Delgado foi sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso no dia 06 de abril de 2001, depois de 12 anos de tramitação no Congresso Nacional, dispõe em seus artigos a regulamentação dos direitos dos portadores de transtornos mentais, vetando a internação em instituições psiquiátricas com características asilares, ou seja, os famosos “depósitos de loucos”, também se estabelece outras salvaguardas importantes, como a necessidade de autorização médica para qualquer tipo de internação e a notificação ao Ministério Público, no prazo de 72 horas nos casos em que a internação ocorra contra a vontade do paciente.

Essa Lei propõe uma rede de serviços substitutivos composta por CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPS AD, serviços residenciais, atendimentos ambulatoriais, e auxílio aos familiares de doentes mentais, comprovadamente carentes, repassando às famílias parte do percentual que o Ministério da Saúde gasta com o pagamento das diárias hospitalares.

A lei da saúde mental é uma lei social, talvez de todas as leis médicas brasileiras, a mais ampla e que envolve o maior número de pessoas na sociedade – usuários, técnicos, críticos, adeptos, entusiastas e pessimistas. Segundo dados da OMS, no Brasil há 13 milhões de usuários de serviços de psiquiatria ou de remédios na área da psiquiatria, podendo beneficiar em torno de 600 mil brasileiros que vivem ou viveram praticamente contrários ao que determina a Constituição do Brasil, em prisão perpétua, sem processo e sem sentença.

Temos que lutar pela humanização do tratamento do doente mental, evitando a psiquiatrização dos conflitos sociais que podem nos levar a um tratamento médico sem necessidade. A idéia de que pela psiquiatria, pela psicologia ou pela intervenção técnica pode se resolver problemas sociais é uma idéia equivocada, a psiquiatria não foi feita para recalcar a personalidade das pessoas.

A doença mental é, talvez, das áreas médicas a que mais exigem solidariedade humana, destemor, sentimentos de cooperação e interação social. Adoecer faz parte da condição humana. Quando alguém adoece, é natural que receba afeto, simpatia e compreensão para superar o problema. Mas o mesmo não acontece quando esta pessoa adoece por um transtorno mental.

A doença, nesse caso, pode ser interpretada como sinal de fraqueza, de autoflagelo, de covardia. Adoecer psiquicamente não é prerrogativa da modernidade. É tão humano quanto nascer ou morrer. O transtorno mental não escolhe nem cor de pele nem classe social. Quantos reis e rainhas fazem parte desta lista? Quantos artistas consagrados que conseguiram realizar grandes obras apesar de seus tormentos? Que sofrimentos não experimentaram Van Gogh, Virginia Woolf e Vladimir Maiakóviski?

Estou tentando me lembrar de uma só família que tenha passado incólume por essa marca. Como convencer as pessoas de que adoecer mentalmente é tão normal? quando ter hipertensão arterial, diabetes ou hemorragia?

A meta é que todo desvalido e marginalizado tenha seus direitos contemplados. Que todo sujeito com problema, independente de cor, classe e diagnóstico, tenha direito a liberdade, ao respeito e a dignidade que façam dele um semelhante, apenas diferente.

Adoecer de um transtorno mental e tão natural quanto os dizeres do verso do poeta Caetano Veloso, “de perto ninguém é normal”. A estimativa do Ministério da Saúde que 25% da nossa população adulta iria exigir algum tipo de cuidados de saúde mental no espaço de um ano. A magnitude dessa realidade provoca enorme descompasso entre a demanda e a disponibilidade de serviços, mesmo nos países desenvolvidos.

O que dizer desse desequilíbrio nos países mais pobres? Nos últimos anos, vimos uma redução substancial dos leitos psiquiátricos no país e a introdução progressiva dos serviços. Vários pacientes saíram da situação de confinamento e voltaram para casa. Os profissionais brigam entre si. Alguns defendem os hospitais, outros, o atendimento comunitário. O paciente fica no meio, a mercê da disputa. Pode ser preciso estender o tratamento por toda vida, mas o transtorno escraviza, deixa a vítima dependendo daquilo, dirão os críticos do uso continuado, por exemplo, de medicação psicotrópica. Sou defensora da interpretação antagônica: o tratamento liberta, deixa o sujeito em condição de respirar, de criar e até mesmo de sorrir e sonhar.

O sistema de saúde mental atual tem muito a melhorar. Uma questão importante é a expansão do número de leitos psiquiátricos em unidades do hospital geral. Receber pessoas com transtornos mentais em mentais em enfermaria de hospitais clínicos auxiliaria a reduzir o estigma enfrentado pelos pacientes e seus familiares. É também fundamental a continuidade do programa de desinstitucionalização progressiva dos pacientes remanescentes em situação asilar, sobretudo em hospitais reconhecidamente deficientes e com histórico de abuso dos direitos humanos.

Temos que refletir sobre quais alternativas em nossa sociedade para que as pessoas que, em algum momento de sua existência, se deparam com fenômeno do enlouquecimento – em si, na família, na comunidade. “Enlouqueci! E ai?” O que fazer perante a “loucura”, ou melhor, as pessoas que vivem esta experiência? Quais as respostas da sociedade em termos de falência do modelo manicomial e insuficiência dos atuais serviços? Além disso, existe a possibilidade de qualquer um de nós pode “enlouquecer”, o que fará a sociedade, a nossa família ou sistema de saúde? Internar-nos? Por que não ser cuidado de forma alternativa? Porque não ser cuidado de forma alternativa? Por que não conviver com a loucura? Na contemporaneidade assistimos a falta de espaço para a vivência da dor, da crise do enlouquecimento… É preciso repensar o cuidado para com essa “existência-sofrimento” respeitando as diferenças e ao mesmo tempo combatendo o preconceito.

Do mesmo modo que o mundo aprendeu a conviver com os hansenianos, com os tuberculosos, cuja história relata episódios de rechaçamento social, agora é a vez de a loucura encontrar o seu lugar no mundo e não mais no isolamento, que pode gerar ainda mais loucuras, pois o homem, independente da condição é e sempre será um ser social.

 

 

Maria Amélia Gouvea Guilherme

Psicóloga, técnica responsável pelo serviço de saúde mental

Secretaria Municipal de Saúde – Prefeitura de Borda da Mata

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