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Deixem salvar vidas, por favor

Neste ano, a doação de órgãos para transplantes, em Minas, caiu. O esforço realizado, na última década, para conscientizar a população de que a doação representa a salvação de outra vida se complicou aqui, em Minas, e, por certo período, quase parou. A imprensa, em seu papel de informar, deu luz a um caso de suposto “tráfico” de órgãos que teria ocorrido no Sul de Minas, até 2001, envolvendo médicos, políticos e gente conhecida em sua região. Se as pessoas citadas são culpadas ou inocentes, não sei dizer, não conheço os detalhes do caso, nem posso avançar conclusões que cabem apenas à Justiça.

Li algumas manchetes de arrepiar, matérias sangrando, e como receptor de um fígado, transplantado em 2011, me apercebi de impropriedades nas reportagens, que agravam mais do que é necessário para um julgamento isento. Para se fazer uma justiça, se arrisca, aqui, fazer muitas injustiças. Não pretendo eu ser o juiz do caso investigado, mas vou me prestar a uma espinhosa exposição.

Digo espinhosa porque meus familiares me pediram para evitar entrar nisso, poderia haver sempre esses “insensatos” para levantar aleivosias, infâmias, ironias, aproveitando-se do clima incendiado que cerca esse caso. Pouco me importa. Venham críticas e pedradas! Se esse meu esforço servir para recuperar a confiança de doadores de órgãos, estou disposto a ser sepultado de pedras.

Conheço o drama e o vivi na pele. Tive que entender e aceitar como é possível que, de uma morte acidental e trágica, possam ressurgir outras vidas. Estou aqui escrevendo em função de um desses milagres que me tocaram, como tocaram muitos outros “sobreviventes”. Estamos aqui quase sem saber como tudo se deu.
Investigamos essa estranha razão de podermos ainda ficar de pé, trabalhar e nos prestar para alguma atividade.

Merecer um órgão significa entrar e ficar numa fila em que o avanço é determinado pela gravidade confirmada por análises clínicas que se renovam a cada 30 dias. Essa lista é acessível pela internet e está à disposição de qualquer profissional de saúde ou outro. Não há a menor possibilidade de avançar fora da “gravidade”; dezenas de hospitais e milhares de pacientes ficam ligados à lista.

Lembro-me, com emoção, das comemorações quando chegava a notícia: “Pai, você piorou!”, ou seja, se aproximou mais um pouco da cabeça da lista. “Está em 56º lugar…”, e, dia após dia, cada vez mais descompensado: “Pai, chegou ao terceiro”, sendo que, nesse lugar, poderia acontecer a qualquer momento dependendo do tamanho do órgão disponibilizado e do grupo sanguíneo.

Psicólogos das equipes de transplantes ainda enfrentam, nessas circunstâncias, um grande drama. Terem que convocar o parente mais próximo do possível doador, normalmente a mãe, para explicar: “Seu filho nunca mais vai se levantar, falar, lhe dar um aceno. Morreu, irreversivelmente. Morreu. A falta de sangue no cérebro já queimou os tecidos cerebrais. Nunca mais poderão se regenerar. Agora resta à senhora uma decisão, e quanto mais rápida esta for, mais possibilidades teremos de preservar outras vidas, que dependerão de um ou mais órgãos que se encontram no corpo de seu filho”. Ainda é dito para essa mãe ou pai ou esposa: “Nunca saberá o nome de quem será salvo, e se será salvo. O receptor, por sua vez, nunca poderá lhe agradecer, a senhora nada vai receber a não ser a certeza de que essa sua decisão poderá preservar uma vida condenada”.

Isso é extremamente árduo. Esse escândalo no Sul de Minas já gerou outras mortes de pacientes que, na fila de espera por um órgão, faleceram antes de ter essa possibilidade. Muitos passaram a associar a retirada de órgãos a um “tráfico” e coisas ainda piores.

O que posso dizer, ainda, é o que ouvi de pessoas qualificadas: “Apesar do que foi escrito, esses médicos serão tardiamente inocentados…”. Seriam estes vítimas de um tremendo equívoco, como se tratou no caso da “Escola de Base” em São Paulo. Parecia “ser”, mas as apurações mostraram “não ser”. Tarde demais.

O tempo é senhor da verdade, mas, pelo amor de Deus, parem! O sensacionalismo, a cada dia, mata mais gente. Deixem a Justiça agir, gastem tinta para ajudar gente que sofre, que depende de um doador.
Estimulem a doação, que significa salvar gente. Ajudem essas mães a optarem por uma generosidade que, em seguida, lhes dará um imenso conforto: “Uma parte de meu filho vive e ainda dá vida a alguém”. O doador não morre.

Tem situações em que a imprensa pode e deve ter grandeza. Esse é meu apelo.

Vittorio Medioli – Fundador do jornal O Tempo

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