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Transbordar

taça

O seu problema é que você fala demais! Onde já se viu? Falar tudo o que sente assim, logo de cara?”

“E o que você quer que eu faça? Quer que eu fique quieta?”

“Não é ficar quieta, é falar menos. Não precisa escancarar. Arregaçar o coração, dizer tudo o que vai na alma. Pra quê?”

Silêncio.

Olhos lacrimosos.

Cabeça baixa.

A voz, que, enquanto contava tudo o que tinha dito e feito após o primeiro mês de namoro, era tão firme e decidida, transformara-se em sussurro.

“Tudo bem. Eu sei que você está certo. Eu falo demais. Mas se não for assim, eu me sufoco!”

Eu que só queria defender a moça dela mesma, fiquei até sem graça. Nunca poderia impedir, mas ao menos alertar, para que não fizesse tudo igualzinho ao que tinha feito das últimas vezes.

Suspiro longo e dolorido.

“Imagine uma taça sendo cheia gota a gota.”

“Pacientemente.”

“Uma gotinha de cada vez, pic, pic, pic.”

“As gotas que caem no fundo da taça vão se ajeitando, acomodam-se lentamente à medida que a próxima e a próxima ali chegam.”

“Com o passar do tempo, a água começa a se aproximar da borda e, quando menos se espera, o liquido transborda.”

“Quando isso acontece, não cai apenas a última gota que ali dentro se acomodou.”

“Não.”

“Cai muito mais.”

“E, a cada gota que entra, outras precisam sair.”

“A taça não consegue acomodar tudo.”

Eu fiquei sem entender absolutamente nada.

Sem precisar falar, perguntei do que se tratava.

Silêncio.

Secou as lágrimas que ainda insistiam em cair e me explicou:

“A taça só transborda quando está completamente cheia.”

Choro.

Fungada.

“Eu sou a taça.”

“Desde que nasci, escuto as pessoas falarem sobre seus sentimentos.”

“Meus pais sempre disseram um para o outro que se amavam. Eu e meus irmãos nunca fomos despedidos sem uma declaração de amor. Elogios e demonstração de apreço sempre foram corriqueiros, naturais.”

“Talvez isso justifique o fato de hoje sentir a necessidade de transbordar, de falar para o moço que está comigo que sim, mesmo com só um mês de namoro, eu já o amo, de verdade. Eu só falo quando sinto. Caso a taça estivesse pelo meio, não falaria. Se eu falei é por que ela transbordou.”

Foi aí que entendi que, ao contrário do que eu imaginava, ela não estava sofrendo ao demonstrar seus sentimentos, estaria sim, deixando de respirar caso não se permitisse transbordar.

Vivi Antunes .

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